março 08, 2006

RECONHECIMENTO: A MOTIVAÇAO DE EXISTIR


Não foi por acaso que Rousseau, Adam Smith e Hegel destacaram o valor do reconhecimento dentre todos os processos elementares. Ele é, de fato, duplamente excepcional. Inicialmente, por seu próprio conteúdo: é o reconhecimento que determina, mais do que qualquer outra ação, a entrada do indivíduo na existência especificamente humana.

Efetivamente, quando uma criança explora ou transforma o mundo a seu redor, recebe também confirmação de sua existência, quando imita um adulto, ela se reconhece como o sujeito de suas próprias ações e, portanto, como um ser existente. Assim, o primeiro reconhecimento que a criança recebe vem de pessoas superiores: seus pais ou seus substitutos; depois, o papel é retomado por outras solicitações encarregadas pela sociedade para exercer essa função. Logo, toda coexistência é um reconhecimento.


A ASPIRAÇÃO AO RECONHECIMENTO

A aspiração ao reconhecimento pode ser consciente ou inconsciente, acionando mecanismos racionais ou irracionais. Posso tentar captar o olhar dos outros por meio das diferentes facetas de meu ser, meu físico ou minha inteligência, minha voz ou meu silêncio.
Sob essa ótica, as roupas exercem um papel particular, pois são literalmente o campo de encontro entre o olhar dos outros e minha vontade, fazendo com que me situe em relação aos mesmos; quero ser parecido com eles ou com alguns dentre eles e não com todos, ou com ninguém. Portanto, escolho minhas roupas em função dos outros, mesmo que seja para lhes dizer que me são indiferentes.

O reconhecimento atinge todas as esferas de nossa existência e suas diferentes formas, e nenhuma pode substituir a outra: conseguem no máximo, proporcionar, conforme o caso, algum consolo.
Tenho necessidade de receber reconhecimento tanto no plano profissional como em minhas relações pessoais, no amor e na amizade; e a fidelidade de meus amigos não pode, na verdade, compensar a perda de um amor, assim como nem toda a intensidade da vida privada consegue apagar uma derrota na vida política.

Hegel afirmou que a demanda de reconhecimento podia acompanhar a luta pelo poder; mas ela pode também se articular com relações em que a presença de uma hierarquia permite que se evitem conflitos. A superioridade e a inferioridade dos parceiros, são, com freqüência, reveladas antecipadamente: cada um aspira nada menos do que a aprovação do outro.

O reconhecimento proveniente dos inferiores, por sua vez, não é de se desprezar, embora seja muitas vezes dissimulado: o patrão, bem sabemos, tem necessidade de seu servidor não menos do que o inverso, o professor tem confirmado seu sentimento de existir pelos alunos que dele dependem, o cantor precisa, todas as noites, dos aplausos de seus admiradores, e os pais vivem o trauma da partida dos filhos, que pareciam, todavia, ser os únicos a pedir reconhecimento.

Essas variantes de reconhecimento se opõem em conjunto a situações igualitárias, no interior das quais surgem mais facilmente os sentimentos de rivalidade. Essas situações, por se só, são numerosas: o amor, a amizade, o trabalho, parte da vida em família.
Enfim, a pessoa pode tornar-se sua própria e única forma de reconhecimento, seja seguindo o caminha do autismo, recusando todo contato com o mundo exterior, seja desenvolvendo exageradamente seu orgulho e reservando-se o direito exclusivo de apreciar seus próprios méritos, ou seja, por fim suscitando em si uma encarnação de Deus que serve para aprovar ou desaprovar nossos comportamentos:
assim, o santo busca superar sua necessidade de reconhecimento humano e contenta-se em apenas fazer o bem.


A CONFORMIDADE E A DISTINÇÃO

Devemos agora distinguir duas formas de reconhecimento as quais todos aspiramos, mas em proporções as mais diversas. A esse propósito, poderíamos falar de um reconhecimento de conformidade e de um reconhecimento de distinção. Essas duas categorias opõem-se uma a outra: quero ser considerado diferente dos outros ou semelhante a eles.
Aquele que deseja se mostrar o melhor, o mais forte, o mais bonito, o mais brilhante, quer evidentemente se sobressair entre os demais; é uma atitude particularmente freqüente na juventude. Existe, porém, um outro tipo de reconhecimento que é antes uma característica da infância e, mais tarde, da maturidade, sobretudo nas pessoas que não têm uma vida pública intensa e cujas relações íntimas estão estabilizadas:
obtêm seu reconhecimento pelo fato de se conformarem, tão escrupulosamente quanto possível, aos usos e normas que consideram apropriados a sua condição. Essas crianças e esses adultos sentem-se satisfeitos quando se vestem como convém à sua faixa etária ou de acordo com seu meio social, quando podem enriquecer suas conversações com comentários adequados, quando provam que pertencem efetivamente a seu grupo.

AS RENÚNCIAS

Certas formas de renúncia a toda e qualquer forma de reconhecimento são radicais. Assim, por exemplo, o autismo, grave anomalia do psiquismo que condena a pessoa a ficar fechado em si mesma, a recusar qualquer contato, troca ou comunicação com os outros.
Não importa a origem desse distúrbio, orgânico ou funcional, o efeito é o mesmo: ao recusar o contato o doente afasta qualquer risco de lhe faltar reconhecimento ou de não receber confirmação de seu valor.

Podemos comparar ao autismo certas atitudes menos patológicas. Podemos perguntar, por exemplo, se o difundido uso das drogas pesadas ou leves, entre os adolescentes ( ou do álcool, mais tarde ) não corresponde a uma recusa em buscar o reconhecimento dos outros.
Quando se está viajando, tem-se a sensação de plenitude, de auto-suficiência, que permite não mais nos preocuparmos com as reações dos que nos cercam. Na mesma faixa etária, a música tem papel semelhante, que eu escuto de preferência muito alto ou com fones de ouvidos: também serve de camada isolante entre mim e o mundo exterior, ela me envolve como um casulo, dispensando-me de solicitar um reconhecimento.

Por conseguinte, podemos observar, tanto nas crianças como nos adolescentes, a tendência à solidão ou à indiferença quanto ao julgamento dos outros, com freqüência, depois de decepções afetivas ou de situações que causaram um sentimento de abandono.
Esconder-se por trás da carapaça da indiferença possibilita, evidentemente, evitar futuras decepções. É claro que tais atitudes de retraimento podem ser interpretadas pelos outros como orgulho ou desprezo, provocando, assim, além da rejeição inicial provavelmente imaginária, uma rejeição real. Esse mecanismo é um exemplo dentre outros onde, como dizem os lógicos, a representação produz a coisa representada.

A renúncia sob o nome de orgulho é uma das mais conhecidas. Pode-se restringir o sentido dessa palavra ( de acordo com o grande número de seus usos ) para designar a renúncia a toda e qualquer confirmação de meu valor por um juízo externo e sua substituição por uma auto-aprovação, confirmação de que só eu detenho o privilégio.
O indivíduo orgulhoso louva a si mesmo: primeiramente, porque sendo orgulhoso jamais se digna a partilhar sua auto-apreciação com os outros (despreza-os demais para tanto); depois porque o orgulho não exige necessariamente um elogio: posso ser orgulhoso e severo comigo mesmo, o importante é que só eu tenho o direito de me julgar.
O orgulhoso é, portanto, na superfície, todo modéstia, visto que não pede nada aos outros, não é vaidoso no sentido da palavra; mas sua auto-estima é bem maior do que a do vaidoso que confia no julgamento dos outros. De onde, sem dúvida, origina-se a fórmula de Rousseau : “ O amor de si, deixando de ser um sentimento absoluto (isto é, introduzindo-se no mundo social), torna-se orgulho nas grandes almas, vaidade nas pequenas.”

O orgulhoso é uma das melhores aproximações possíveis do ser auto-suficiente. Para não depender dos outros, admitindo sua incompletude, procura fazer tudo sozinho: é hábil tanto no plano físico quanto no mental, sabe sempre cuidar de si. Sua vontade de autonomia o conserva em boa saúde, pois enfermidade é dependência.
Ou então, é um ser ascético, desprovido de necessidades: come pouco, vive duramente. Suspeita-se duramente que os santos cristãos nutriam um grande orgulho; aquele que diz “não tenho necessidade de nada” subentende-se: tenho tudo; sonha ser deus.
Na verdade, o orgulho nos induz a fazer a separação entre o reconhecimento de nossa existência e a confirmação de nosso valor: mostro indiferença quanto a esta mas não àquele. Minha tranqüilidade de espírito provém não do juízo positivo que faço de mim, mas do fato de que esse juízo, positivo ou negativo, é reservado a mim; entretanto tenho sempre necessidade dos outros para me sentir existir, mesmo que não lhes peça que me aprovem.

O orgulhoso gostaria de apresentar suas atividades como livres de qualquer finalidade externa: age a sua maneira, porque é ele quem mais lhe agrada no mundo e não porque espera recompensa. Não que tal motivação seja impossível:
nem sempre fazemos tudo buscando reconhecimento, podemos também encontrar até na realização de um gesto, sem passar pela mediação do olhar aprovador. Mas, no orgulho, a mediação não está ausente, esta interiorizada.
A diferença pode parecer capciosa, no entanto, é real. Se alguém, seja marceneiro ou escritor, fizer bem seu trabalho, pode encontrar satisfação, seja no juízo positivo que tem de si mesmo (é a interiorização orgulhosa do julgamento dos outros), seja no próprio ato de realizá-lo, sem passar por nenhuma mediação (é o que se chama de “realização”).

Na superfície, o indivíduo orgulhoso é agradável em seu ambiente; mas, em profundidade, é frustrante. É agradável, pois não nos incomoda com apelos, não nos solicita continuamente e presta serviço com mais freqüência do que pede; tem comportamento modesto, ora, a modéstia nos outros é uma qualidade muita apreciada. Mas, se estou destinado a conviver com ele, descubro progressivamente os inconvenientes da situação.
Ele me recusa todo reconhecimento indireto ao não admitir sua própria incompletude. Se não tem necessidade de mim, para que eu sirvo? Uma pessoa dependente de mim pode causar-me preocupações e aborrecimentos; no entanto, ela me dá mais do que toma de mim: ela me faz com que me sinta necessário.
“sempre se tem necessidade de alguém que tenha necessidade de você”. Essa mãe se queixa do tempo que o filho lhe toma, essa mulher sofre por ter de visitar um prisioneiro, esse homem esta irritado por ter de cuidar de seu pai doente; mas o desaparecimento desses seres dependentes seria também um golpe nos seus sentimentos de existência.
A exigência de reconhecimento que o outro me faz é em si mesma um reconhecimento por mim. Ora, o orgulhoso não me faz qualquer pedido, mas busca minha aprovação, não admite sua fraqueza. Tenta sempre fazer tudo melhor que seu próximo, a ponto de este se sentir humilhado pela comparação. Nesse aspecto, o indivíduo vaidoso, insuportável na superfície, é bem mais agradável: sinaliza sempre a necessidade que tem de mim.
É o que já havia notado Adam Smith: o homem orgulhoso é mais respeitável, porém, mais difícil de conviver, o vaidoso que quer sempre agradar é uma companhia agradável: é fácil dar-lhe prazer.

A SOLUÇÃO

A solução para os que vivem próximos do orgulhoso seria, certamente, ir embora, mas ele não a suportaria e faz com que se saiba disso. O orgulhoso exerce sobre os outros um duplo constrangimento: exige que estejam presentes (o que confirma sua existência), mas não lhes pede nenhuma contribuição em particular, pelo contrário, ostenta sua completude (sua auto-aprovação).
É o que se passa com antigos maridos que desprezam suas esposas, mas não podem viver sem elas, pois têm o hábito de falar diante delas (não propriamente com elas), mesmo que seja para lhes dizer, especialmente, que elas não merecem escutá-los. O orgulhoso exige do próximo seu reconhecimento, mas não o admite; devido a isso, recusa-se a conceder o seu.
Artigo proposto à disciplina de psicologia como requisito a obtençao de nota.

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