novembro 23, 2006

UM CARA COM POUCOS SENTIMENTOS

Quando ele chegou já havia acontecido o enterro. Entrou na casa de portas largas e deu de cara com sua mãe. Perguntou-lhe do enterro e ela respondeu que havia enterrado o irmão as 11h00min daquela manhã. Ele havia chegado tarde demais. Chegou as 12h00min.


Com um ar pálido, não pela morte do tio, mas por uma noite mal dormida. Vestia preto e seus olhos estavam sugados pelas olheiras de sono. Isto lhe causava uma introspecção ainda maior. Notou que sua mãe havia chorado muito e que ainda trazia no semblante aquele horror que era ter estado num corredor de um pronto-socorro público. Tentando passar uma imagem forte, sua mãe lhe diz que o irmão havia morrido sentado naquele corredor e que este enquanto vivo só lhe pedia para ir para casa.



Enquanto ouvia isso tudo ele pensava no motivo de não conseguir chorar. Ele guardava consigo um remorso por ter discutido com o tio no dia anterior. Tentando disfarçar para si mesmo e para os outros esse remorso, mudou de assunto dizendo estar querer almoçar, que não havia comido nada desde que recebera a noticia de madrugada. Desde então ele não conseguiu mais dormir.



Após essa rápida conversa sua mãe decidiu tomar banho, como se quisesse se desfazer da dor. Tudo aconteceu muito rápido, o enterraram logo, não era do feitio dela velar qualquer parente morto. Foi assim com seu pai, com sua mãe, com seu irmão mais novo e agora com o irmão do meio.


Ele sentou-se a mesa, pôs o prato com o almoço sobre ela e ainda aí nehuma lágrima havia escorrido. Sua mãe sentou-se também e num desses raros momentos entre os dois, estavam juntos como uma família.



Ela contava que ele (o irmão) descansava junto aos túmulos dos pais. A família estava sendo reunida pela primeira vez.



Ouvindo todo o desabafo de sua mãe, ele pensava na discussão que havia tido com o tio ainda vivo. “Falou” para si mesmo, mas seus lábios não se mexeram. De repente ele do nada interrompe e diz que quando atendido o telefone de madrugada, já sabia se tratar de uma morte. A morte de seu tio. Lembrou também que dias antes da morte seu tio falou, lembrando sorridente, do irmão mais novo, que coincidentemente ou não, morrera num mesmo mês de novembro, com dois dias de diferença.



Nesse momento seus olhos encheram de leves lágrimas, mas se segurou para não chorar. Ele mesmo assim não conseguia continuar. Olhou para o lado e viu os olhos de sua mãe as lágrimas quase correndo. ela uma mulher de poucos choros, naquele momento era tão humana quanto qualquer outro.


Conversaram, lembraram situações, expuseram culpas. O almoço acabou. Ele saiu da mesa e disse que já ia embora, quando deu as costas só ouvia ao longe: - Ele não gosta desse lugar. Sempre vai embora logo.



Enquanto ia embora lembrava e não conseguia compreender por que não conseguia chorar. Percebeu a dureza de seu coração.



Chegou em casa, lembrou do tio e chorou escrevendo e sentindo este texto. Odiou-se percebendo o que ele era.




Em memória de Siva Gerson dos Santos,
48 anos, tio, irmão. Ausente.




Ass.: Um cara com poucos sentimentos.