março 08, 2006

CARNE BÊBADA

Severino ficou em casa vários dias por causa dos medicamentos e das reações a ele. Quando por fim despertou para ver uma manhã ensolarada, a qual não dava importância. Celebrou mesmo assim o evento. Estava consciente. Usando uma pá para revolver a terra numa pequena horta, passou seis horas fora de sua casa alugada.

Apesar de ser um trabalho fácil e contentador em outros dias, suas mãos não equilibravam direito o instrumento, havia meses que não mexia aquele barro seco. Mesmo com luvas, seus dedos ficavam quase imediatamente cheios de bolhas, que logo se romperam. Mas o solo era fértil e ele imaginava manhãs de verão, não muito distantes, em que iria carregar com os braços cheios, seu próprio milho e seus próprios tomates e abobrinhas para cozinhar.

Ficou nisso até o fim da tarde. Depois entrou em casa sentou-se no sofá e pegou um catálogo. Ficou lendo a lista e seus vários nomes e números durante a meia hora seguinte. Na maior parte do tempo, permaneceu absorto, mas tinha que fazê-lo.

As bolhas nas suas mãos estavam doendo. Levantou-se do sofá, foi até o armarinho da cozinha, onde guardava algumas pílulas analgésicas. Hesitou de início, não sabia se o remédio lhe causaria algum mal-estar. Pego-as e tomou duas com um copo de suco.

Naquele instante, quando estava a ponto de sentar de novo, Siva ouve um ruído de motor, alguém subindo pela rua.
Debruçou-se para olhar entre as festas da janela lacrada e viu um carro branco parar do lado de fora, do outro lado de sua rua. Não havia emblema nem dizeres: quatro janelas esfumaçadas em branco na parte de trás e pneus já há muito tempo rodados.

Houve um barulho. Nada de anormal. Alista telefônica havia caído do descanso de braço do sofá, encontrando a chão riscado com muita rapidez.
Dentro da casa alugada, Siva estava gritando.

Os olhos estavam piscando, imóvel e indefeso ali, ele só via a única saída de lugar nenhum. A porta da cozinha, já bastante distante de seus olhares vermelhos.
Na sala o que o atordoara, o que produziu aquele som insuportável aos seus ouvidos, não existia. Não conseguia ver a simples ação que moveu o objeto, o vento em suas folhas o empurrara para baixo.

Imóvel junto à janela, só existia então o silêncio.
Agora as cortinas começaram a se mexer novamente, como havia notado em outras vezes, quase titubeantes.

Ficou então esperando por uma resposta durante alguns minutos. Seu grito teve forcas quase para sair de sua boca, o que impossibilitou de alguém o ouvir. Não alguém que ele quisesse que ouvisse.

Severino recobrando os sentidos, voltando ao seu estado normal.
Não imediatamente. Era gradual, até que por fim recobrou totalmente a consciência. Então voltou a si. Começou a absorver sensações, impressões.

Estava jogado no chão de barriga para baixo.
O rosto e as costelas saltavam em dor nos pontos em que os pregos do assoalho o tinham encostado. Sentiu-se esmurrado e chutado. Foi algo que o ruído despertou. Um domínio dentro de si, em sua casa alugada.

Estava em sua mais absoluta escuridão.
Moveu a cabeça e o piso raspou sua face esquerda, enquanto o prego pontiagudo e solto engolia-lhe o olho. Estendeu os dedos para toca-lo.

Sentiu que o soalho a algum tempo precisava de concerto, suas pecas estavam soltas, fiapentas e velhas, soltando talas a qualquer um que as pressionasse.
Tateou com a mão e descobriu que o tapete terminava a uns poucos centímetros de onde estava caído. Para além estava a mesinha do telefone.

Lembrou-se de ter ouvido sua irmã, Arlete, lhe falar que caso precisasse de ajuda, ligasse.
Deu-se conta de uma pressão em seu rosto. Trouxe o dedo indicador até ele e sentiu um corrimento contínuo e grosso no seu olho esquerdo, o qual cobria mais ainda o breu de suas vistas. Era então por isso que não podia enxergar.

O prego enferrujado tinha soltado pedaços de seu metal e perfurado um pequeno centímetro — Ele não conseguia nem abrir o outro olho dormente.
De uma certa distância uma voz falou:

— Aposto que podia ter sido pior! A vida é assim mesmo, cruel!
Aquelas palavras soaram ironicamente lentas. Captou também um graduado leve e curto som, da voz estranha. Podia pressentir que estava a certa altura do chão.

— Onde você está? Perguntou Siva surpreso ao falar.
— Não importa. Disse a voz.
— O que você quer?
— Tudo ao seu tempo. Mais uma vez a voz.

Quando aquelas palavras partiram, só havia silêncio.
— Posso sentir o cheiro de sua alma. Sabe disso?
Ele estava quase alegre em ouvir a voz novamente. O som restabelecia alguma sensação de lugar e distância, algum instante para respirar.

Uma leve pausa, curta, amedrontadora. E então a estranha voz cospe uma risada breve.
Outra pausa.
E agora um novo ruído.

Algo sendo deslocado. Não só podia ouvi-lo, mas também senti-lo através da extensão da madeira que estava caído.
Ele estava indo em sua direção. Desta vez mais forte. Ergueu os ombros e se sentou para ficar voltado à direção de onde vinha — Era o vento vindo solto da janela não mais trancada.

— Levante-se. Disse a voz.
— Levante-se. Você ainda pode ver com um olho.
Ele sacudiu uma perna, sacudiu outra. Então sentiu algo frio e
deslizante tocar o chão de seu pé — Era seu suor acumulado na madeira encerada.
— Você sabe onde está? Perguntou a voz.
— Você já esteve aqui outras vezes.

Ele podia visualizar um vulto pequeno e escuro em meio às cortinas brancas. Não pode ser! Pensou ele — Mas estava ali.
Teve vontade de vomitar. Seu estomago se contraiu.
Ele ficou imóvel, deixando o soalho suportar seu peso, enquanto este rangia contra o chão.

— Mova-se. Disse a voz.
Estava preso no chão. Pensava-se assim.
— Vamos! — Pelo menos tente. Disse em seguida.
Sentia –se pálido.
— Você quer uma mãozinha? — perguntou ironicamente o vulto — mantenha-se vivo e eu o deixarei ir.

Ela ia matá-lo, pensou Siva, tinha certeza disso.
Mesmo assim escolheu viver nem que fosse por mais alguns segundos.
Andou um pouco para o lado e enxergou fosca a janela. Agora ele estava a sua esquerda — e se confidenciou que talvez pudesse ir em direção aquilo.

Impossível, só haviam duas saídas. E uma delas era a janela.
— passaram-se trinta segundos. Sobra um minuto e meio — falou o vulto em voz alta — decidi não te avisar sobre o início da contagem — ironizou.

A coisa ficou olhando enquanto o sangue de Siva corria atravessando seu corpo e indo direto para a outra extremidade da sala. Ultrapassando a porta de entrada.
Achou isso notável. O modo como o líquido havia corrido imponente entre as frestas do piso, continuando a correr até o instante em que não tinha mais chão diante de si.

Era alguma coisa antropozoomórfica, pensou Siva, algum trejeito involuntário fez com que percebesse um algo mais de animalesco naquele ser.
Percebendo a gravidade do momento, algo o fez abandonar uma investida contra a coisa. Mesmo que conseguisse não poderia. Mal se mantinha em pé. E se fizesse sem sucesso? O que viria a seguir.

— Sabe? Isso não se pode imitar. Mesmo nos filmes, toda a equipe se prepararia, iria muito sutilmente determinar o curso de seu sangue, antes deste se precipitar além da borda do piso — comentou com Siva, a coisa, e este sem entender nada.

E agora um metal, uma espécie de gancho começou a tinir. A coisa o estava arrastando no chão, uma serie rápida de ruídos arrastados — ele escutava o tinir, sentia o riscar pelo piso, fazendo seus pés formigarem.

O barulho estava mais perto. Ele imaginou a ponta do metal na sua direção, fria e pontiaguda.
O vulto o estava alcançando, restava só alguns passos de distância.
Ele podia ouvir a respiração dele.

As riscadas cessaram, não conseguia ouvi-las andando em sua direção.
E afastou-se para trás...
...um passo. Até que apoiou o pé esquerdo e sentiu o empossado chão, nenhum espaço livre, só um líquido viscoso e logo estava caindo para trás, sem controle.

Deslizando.
Ele foi caindo, caindo, caindo.
Precipitou-se às cegas para baixo, sabendo que algo o esperava quando finalmente encontrasse o solo de novo. Algo ruim.

Quando ele piscou ao acordar, a porta da sala havia sido aberta.
Claridade. Um feixe de luzes fortes, brilhando nos seus olhos. Tentou erguer uma das mãos, proteger os olhos. Mas exigia um esforço grande, grande demais. Deixou o braço cair no chão, e fechou os olhos novamente.

A criatura ergueu o gancho e girou-o, fazendo-o brilhar num arco em direção ao pescoço de Siva, e isso foi a ultima coisa de que ele se deu conta naquele instante.
Severino Gerson dos Santos, beirava os quarenta e dois anos. Tinha mulher e filha.
Seu quadro psicológico o definia ainda como maníaco-depressivo.

Sua irmã, Arlete, havia alugado aquela casa uns cinco meses atrás. No penúltimo mês, Siva tinha quase perdido os dedos das mãos. Cavou o chão de cimento até encontrar terra, num de seus ataques.

Quando os enfermeiros chegaram na casa, o encontraram nu, caído e todo envolto em sangue. Suas roupas estavam empilhadas no chão. Parecendo-lhes terem sido arrancadas do corpo.
Siva usara um pequeno objeto contorcido e pontiagudo para perfurar seu próprio olho. Alegou não ter cometido o ato, responsabilizando um ser com corpo de gato e cabeça de gente.

Depois que a mulher o abandonou, Arlete foi obrigada a tranca-lo na casa.
Em seu último ataque Severino havia até tomado álcool combustível. Morreu com síncope. Era alcoólatra.


Conto Baseado em um fato real(familiar). Ano de produçao: 2003.

Nenhum comentário: