março 09, 2006

MÍLTON E O CONCORRENTE

Mílton ainda não abriu a sua loja, mas o concorrente já abriu a dele; e já está anunciando, já está vendendo, já está liquidando a preços abaixo do custo. Mílton ainda está na cama, ao lado da amante, desta mulher ilegítima, que nem bonita é, nem simpática; o concorrente já está de pé, alerta, atrás do balcão.


A esposa — fiel companheira de tantos anos — está ao seu lado, alerta também. Mílton ainda não fez o desjejum (desjejum? Um cigarro, um pouco de vinho, isto é desjejum?) — o concorrente já tomou suco de laranja, já comeu ovo, torrada, queijo, já sorveu uma grande xícara de café com leite. Já está nutrido.


Mílton ainda está nu, o concorrente já se apresenta elegantemente vestido. Mílton mal abriu os olhos, o concorrente já leu os jornais da manhã, já está a par das cotações da bolsa e das tendências do mercado. Mílton ainda não disse uma palavra, o concorrente já falou com clientes, com figurões da política, com o fiscal amigo, com os fornecedores.


Mílton ainda está no subúrbio; o concorrente, vencendo todos os problemas do trânsito, já chegou ao centro da cidade, já está solidamente instalado no seu prédio próprio. Mílton ainda não sabe se o dia é chuvoso, ou de sol, o concorrente já está seguramente informado de que vão subir os preços dos artigos de couro. Mílton ainda não viu os filhos (sem falar da esposa, de quem está separado); o concorrente já criou as filhas, já formou-as em Direito e Química, já as casou, já tem netos.


Milton ainda não começou a viver.
O concorrente já está sentindo uma dor no peito, já está caindo sobre o balcão, já está estertorando, os olhos arregalados — já está morrendo, enfim.


Conto de Moacyr scliar.

2 comentários:

Tony Rôla disse...

Mas o detalhe em questão é: viver, para o concorrente (que simboliza os "adeptos" do mundo capitalista), é se entregar de corpo e alma aos parâmetros exigidos pelo mercado. Esta filosofia de vida é criticada pelo autor, que defende que viver nesta correria insesante faz com que a pessoa se acabe em um velocidade maior, gastando todo seu tempo e esforço no trabalho, não deixando espaço para diferentes possibilidades.

Anônimo disse...

muito bom este conto, li antes no livro da companhia das letras.Muito bom!surpreendente!
tua imagem de fundo também é muito boa.
paulo rocha
pauloroch@yahoo.com.br